Argumento ontológico de Descartes
No parágrafo 9 das Meditações V, Descartes apresenta da seguinte forma o seu argumento ontológico a favor da existência de Deus:
(…) todas as vezes (…) que me ocorrer pensar num ser primeiro e soberano (…) é necessário que eu lhe atribua todas as espécies de perfeição (…). E esta necessidade é suficiente para me fazer concluir (depois que reconheci ser a existência uma perfeição), que este ser primeiro e soberano existe verdadeiramente.
Tal como se pode constatar, Descartes visa provar a existência de Deus com base neste argumento:
- Um ser sumamente perfeito tem todas as perfeições.
- A existência é uma perfeição.
- Logo, um ser sumamente perfeito existe.
Será este um bom argumento? Tipicamente a crítica mais comum a este argumento consiste em atacar a premissa 2; pois, com base em Kant, pode-se defender que se a existência não é uma propriedade, então a existência não é uma perfeição (ver aqui). Mas parece-me que há problemas mais graves e básicos do que esse que não estão relacionados com a verdade das premissas, mas sim com a própria estrutura lógica do argumento.
Para analisar com rigor este argumento, vamos formalizá-lo ao utilizar três predicados – \(S\), \(P\), e \(T\) – e uma constante \(e\). Assim, ‘\(e\)’ representa a propriedade da existência, ‘\(Sx\)’ abrevia ‘\(x\) é sumamente perfeito’, ‘\(Px\)’ abrevia ‘\(x\) é uma perfeição’, e ‘\(Txy\)’ abrevia ‘\(x\) tem a propriedade \(y\)’. Com base nessas abreviaturas, pode-se formalizar intuitivamente o argumento de Descartes do seguinte modo:
- \(\forall x(Sx \to \forall y(Py \to Txy))\)
- \(Pe\)
- \(\therefore \forall x(Sx \to Txe)\)
Nesta formalização o argumento de Descartes é claramente válido (ver aqui); contudo, não prova realmente a existência de um ser perfeito. Pois, em 6 não diz que há um ser sumamente perfeito que existe, mas apenas que, para qualquer \(x\), se \(x\) é sumamente perfeito, então \(x\) tem a propriedade da existência. Mas isso é só uma condicional. Por isso, é preciso alterar a conclusão de forma a dizer precisamente que há um ser sumamente perfeito que existe. Nesse caso temos a seguinte formalização:
- \(\forall x(Sx \to \forall y(Py \to Txy))\)
- \(Pe\)
- \(\therefore \exists x(Sx \wedge Txe)\)
Com essa reformulação o argumento já teria uma conclusão existencial ao afirmar-se que pelo menos um ser sumamente perfeito existe. O problema é que neste último caso o argumento é inválido, dado que 9 não se segue validamente de 7 e 8 (ver aqui). Para se ter um argumento válido com uma conclusão existencial é preciso alterar a formalização lógica da premissa 1 (a qual terá de ser igualmente existencial), resultando na seguinte formalização:
- \(\exists x(Sx \wedge \forall y(Py \to Txy))\)
- \(Pe\)
- \(\therefore \exists x(Sx \wedge Txe)\)
Aqui temos um argumento válido com uma conclusão existencial (ver aqui). O problema é que comete de forma escandalosa uma petição de princípio, dado que em 10 já se está a afirmar que há um ser sumamente perfeito para depois concluir em 12 que há um ser sumamente perfeito. Ora, isso é completamente circular. Assim, o argumento falha em provar a existência de Deus. Mas há outras versões do argumento ontológico, como a versão de Leibniz, que procura ultrapassar esses problemas (ver aqui).